Por Mário Breda - viajante português em Malaca
O meu encontro com o Mário em Malaca, sem nos conhecermos anteriormente, foi mais um daqueles encontros para lá do óbvio que me deixou a reflectir. Ambos portugueses sem nunca nos cruzarmos em Portugal, com pessoas amigas em comum e um interesse especial por desenvolvimento comunitário e psicologia. Convidei-o a escrever sobre a comunidade portuguesa de Malaca bem como a sua viagem pela Ásia. Eu costumo dizer: quem passa, esquece ou não esquece.
Hoje, dia 15 de Setembro de 2010, é com enorme orgulho que digo:
Obrigado Mário por não nos esqueceres.
Cheguei a Malaca num Domingo de Julho de 2010, dia 25, ao fim da tarde. A minha viagem de férias tinha como destino a Tailândia onde viajei durante cerca de 3 semanas. Mas, estando no país ali ao lado, não podia perder a oportunidade de ir conhecer Malaca. E foi fácil. Depois de um voo para Kuala Lumpur onde passei a noite e a manhã seguinte, apanhei o monorail aéreo e depois a rede de comboios que me levou à central rodoviária de Bukit Jalil. Dali partem de meia em meia hora autocarros para Malaca (ou Malacca ou Melaka). A distância é de cerca de 150 km, a maior parte dos quais se faz em autoestrada, os restantes em boa estrada. Nós europeus, com os nossos preconceitos etnocêntricos, pensamos que na Ásia está tudo muito mais atrasado que na Europa, mas estamos redondamente enganados. A Malásia é um país desenvolvido, talvez mais que a Tailândia, mas em qualquer um desses países se viaja muito bem, com segurança e conforto.
Ao aproximarmo-nos de Malaca, começamos a ver sinais de que é uma grande cidade, com muitos edifícios altos (o meu hotel tinha 26 andares) que definem a silhueta da cidade mas que em nada interferem com o centro da cidade que mantém os seus edifícios tradicionais.
Logo que me instalo no hotel, apetece-me imediatamente sair. São 5 da tarde, caminho cerca de 10 minutos por ruas com letreiros em chinês de lojas que estão fechadas. Porque hoje é Domingo. E logo me deparo com a Igreja de São Francisco Xavier, construída no século 19, de onde as pessoas começam a sair porque a missa estava a terminar. Apesar de não ter sido construída no tempo dos Portugueses (1511 a 1641, 130 anos), nem dos holandeses que vieram a seguir, mas no tempo dos ingleses que foram os últimos a governar a cidade (e o país, colónia inglesa até à independência em 1957), e apesar de São Francisco Xavier não ser português mas espanhol, sinto que há um pulsar português naquele fim de missa. Mesmo depois de tudo desaparecer, de as igrejas se transformarem em ruínas e de as pessoas se misturarem com os naturais, fica a vivência espiritual que os povos conservam de geração em geração. Já tinha sentido o mesmo em Cochim e noutros lugares em que umas poucas pedras ainda atestam a presença dos portugueses do século 16 (aquela raça de gente que não parece ter saído deste país nem ter nada a ver com os Portugueses de hoje) mas em que a religião católica é o legado mais forte que deixaram. E isso não temos dúvidas de que foram os Portugueses que levaram e ensinaram, quer concordemos ou não.
Penso num homem tailandês, de origem chinesa como tantos outros, com quem conversei na estação de comboios de Nakhom Pathom enquanto esperava o comboio para Kanchanaburi (junto ao rio Kwai) que me perguntou intrigado "por que vai você a Kanchanaburi ?". Disse-me depois que tinha estudado num colégio de missionários católicos em Bangkok, fundado em tempos por missionários portugueses: "Um dia perguntei a minha mãe por que é que sendo quase todos budistas na Tailândia, eu era católico. A minha mãe respondeu: porque também eu sou e os teus avós também eram". E por isso este homem se identificou comigo, me dirigiu a palavra, por pensar que eu, europeu, seria provavelmente também cristão como ele. A religião é, assim, uma marca que fica gravada numa família e que segue de geração em geração, quase fazendo parte do seu património genético.
Sendo a Malásia um país em que predomina a religião muçulmana, em que as mesquitas estão por todo o lado, sentimos ao chegar à cidade de Malaca que estamos em "território" cristão. Mas também chinês, se pensarmos nos belos templos budistas que abundam na "chinatown". A Malásia é um país habituado à presença de muitos povos distintos, convivendo de forma tolerante e fraterna, não só os europeus (portugueses, holandeses e ingleses, por esta ordem de chegada e ocupação) que ali estiveram ao longo dos últimos 500 anos mas também de indianos, chineses e outros povos na actualidade.
Antes da chegada dos Portugueses em 1511 (comemoram-se no próximo ano os 500 anos), Malaca era o maior porto daquela região de transição entre o Índico e o Pacífico, em que do Ocidente chegavam barcos carregados de mercadorias da Arábia e da Índia, e do Oriente vinham barcos carregados do Sião, da China e da Indonésia, trocando as suas mercadorias sem ter de pagar taxas ao porto da cidade. É hoje claro que os Portugueses acabaram com isso tudo. Como não conseguiram a bem, fizeram a mal: dispararam tiros de canhão a partir das caravelas e destruíram casas na cidade afugentando a população e obrigando o sultão a render-se, a entregar a cidade e a retirar-se para o interior do território. E logo os Portugueses construíram uma muralha à volta da cidade para se defenderem e impuseram taxas (de 10% a 20%, conforme a origem das mercadorias) a todas as transacções de mercadorias realizadas no porto de Malaca. Consequências ? O porto franco acabou, a maioria dos mercadores passaram a evitá-lo e a procurar portos alternativos, foi o fim da época de ouro da cidade. E apesar disso tudo, este povo nunca escorraçou os Portugueses, tendo permitido que esta comunidade continuasse a praticar a sua religião e os seus hábitos culturais. Sobre isso, falaremos mais à frente, quando chegarmos ao Bairro Português, conhecido por "Portuguese Settlement".
Para mim é também paradoxal que esta cidade tenha construído uma réplica em tamanho natural da caravela portuguesa "Flora del Mar", usada para transportar o tesouro saqueado à cidade e que depois se afundou no Índico. Aí instalaram o Museu Marítimo, onde Gama e Albuquerque são recordados. É claro que esse acto foi politicamente polémico mas o comité local de Malaca Património da Humanidade assim entendeu que devia ser feito, porque a história não pode ser alterada e há que saber respeitá-la para se ser respeitado.
Voltemos àquele Domingo à tarde de Julho. Depois de ter visitado a igreja de São Francisco Xavier (o grande santo cristão venerado em todo o Oriente, homem culto e viajado que por várias vezes visitou Malaca), virei-me para o lado e lá estava o rio Malaca com o casario baixo nas suas margens, alguns restaurantes e esplanadas, barcos circulando com turistas, várias pontes ligando ao outro lado da cidade. Mais uma agradável surpresa que não esperava.
Ainda tive tempo para continuar o passeio a pé e descobrir o largo central da cidade, enquadrado pelas cores vermelho-tijolo de 3 interessantes edifícios: a Igreja de Cristo; a "Stadthuys" construída pelos holandeses no século 17 como residência do governador e onde hoje está instalado o Museu de História e Etnografia; a torre do relógio construída já no tempo dos ingleses. E lá estão alinhados, à espera de turistas para transportar, os "trishaws" engalanados com flores de plástico garridas, conforme as fantasias do seu condutor; são bicicletas a pedal com uma espécie de "side car" onde se podem sentar duas pessoas. A forma mais romântica de percorrer a cidade.
Mas à noite houve uma surpresa ainda melhor que eu não esperava. Antes de vir, eu tinha estabelecido contacto com a Associação Cultural "Coração em Malaca" e combinado encontrar-me com a Dra. Bárbara Candeias, professora e animadora cultural na comunidade portuguesa. Nunca nos tínhamos visto antes. Ao fazermos o primeiro contacto local por mensagem escrita, informou-me que ia haver uma festa com passagem de modelos com fatos de inspiração tradicional e com actuação de um dos grupos de folclore português.
Que feliz coincidência, no dia da minha chegada! E foi aí que pela primeira vez me encontrei pessoalmente com a Bárbara e que descobrimos também a coincidência de termos sido estudantes contemporâneos na mesma Universidade, onde ela se licenciou em Desenvolvimento Comunitário. Penso que ela não poderia ter encontrado comunidade mais acolhedora e interessante para desenvolver o seu projecto de vida profissional, na qual parece estar como peixe na água. Gostei de testemunhar como as pessoas a acarinham e como ela se sente tão integrada, como se já fizesse parte daquela comunidade.
Nesse serão tive também o prazer de conversar longamente com o Sr Michael Banerji, presidente do comité local de Malaca Património da Humanidade e residente activo na comunidade portuguesa, e de ser contagiado pela sua boa disposição, conhecimentos e empenhamento na promoção da identidade cultural da comunidade portuguesa.
Acabou em beleza o primeiro dia, com a promessa de no dia seguinte visitar o Bairro Português e jantarmos na esplanada da Praça de Portugal.
No dia seguinte (e último, para pena minha, pois Malaca merece muitos mais dias) começei cedo por visitar a Igreja de São Pedro, construída no século 18 no tempo da ocupação holandesa. Depois decidi alugar uma bicicleta para me facilitar as deslocações pela cidade. Passei pelo cemitério holandês, pelo palácio-museu do sultão (reconstruído segundo os desenhos do antigo palácio ardido), pela famosa "A Famosa" ou Porta de Santiago (o que resta da muralha portugueasa), pela colina verde onde se erguem as paredes da Igreja de São Paulo construída pelos Portugueses do século 16. São Francisco Xavier foi aqui sepultado em 1553, tendo os seus restos mortais sido trasladados para Goa mais tarde, onde permanecem. Todos estes locais estão cheios de turistas, especialmente asiáticos mas também muitos australianos e europeus (portugueses são nenhuns ou raros, por estas paragens). Tal como no passado, também hoje muitos povos diferentes se cruzam nesta cidade aberta.
Depois visitei o Museu de História e Etnografia e o Museu Marítimo, ambos bastante bem organizados e documentados. A cidade tem muitos outros museus para visitar mas um dia não chega. De tarde andei pela "China town" que me fascinou com as suas casas dos anos 30 e os seus magníficos templos budistas.
Malaca é, para quem a descobre, uma cidade fascinante. E penso que isso se deve a várias coisas: às reminiscências históricas visíveis, aos seus museus bem equipados e documentados, ao casario que exprime as várias influências arquitectónicas e, sobretudo, à convivência pacífica de vários povos e religiões.
Um olhar sobre Malaca, continua na próxima semana...
Mário, Luísa, Bárbara, Edgar, António
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